20 de mar. de 2010

Dia do Contador de Histórias

Publico um antigo texto em homenagem a todos os Contadores de História.

Beijos,
Fernanda
O Grande Graxaim do Pampa

Um bom contador de causos prende o olhar, suspende a respiração, hipnotiza o interlocutor e faz de conta que a vida é algo muito maior do que ela é.
Uma vez conheci um, são raros, e se denunciam num olhar que brilha, e num tipo de sorriso que mente e não se incomoda com isso. Num trejeito dos músculos da face escondia todos os segredos do mundo. Eu era muito pequena e nem tinha ainda este pêlo longo e grosso, propício para dias de inverno. Andava protegida pela sombra de minha mãe, disputando leite com meus irmãos.
Um dia, nunca esqueço, brincávamos de lutar, quando o chão tremeu... Mamãe ficou alerta e silenciosamente nos puxou para o tronco oco de um velho Umbu. O tremor, que todos os animais sentiram, foi provocado pelas patas potentes de um belo e pesado cavalo. Em seu lombo encilhado vinha este tal contador. Decidiu acampar justamente ao pé do Umbu. Mamãe foi para o fundo da árvore oca e mandou que ficássemos quietos e dormíssemos. Fazia muito frio e seu pêlo servia para aquecer-nos. De dentro da toca sentíamos o bafo quente do cavalo, e os movimentos grotescos do homem, que tratou de juntar gravetos e iniciar uma pequena fogueira. Meus olhos já não conseguiam ficar fechados, a fogueira era simplesmente linda, nela uma chama quente e cheia de vida dançava e crescia. Com muito cuidado, atraída pela beleza da fogueira, fui chegando até a porta da toca. Mamãe e os outros dormiam, como manda o bom senso. Encostei minha boca na raiz do Umbu e fiquei observando tudo. Depois, foram chegando mais cavalos, cada um com um homem. Barulhentos e desengonçados largavam coisas pelo chão e riam de qualquer bobagem.
Pedaços de comida, espetada em taquaras compridas, soltavam um aroma tentador. Eles comeram tudo! Um pequeno osso caiu bem perto de mim. Puxei com muito cuidado, nunca mais esqueci daquele gostinho, que colava no céu da boca.
A noite, uma das mais escuras de que me lembro, foi longa. Num determinado momento a cantoria parou e só se ouvia o estalar do fogo e o uivo do vento. O tal contador bateu com a ponta da faca no estribo do cavalo e todos olharam para ele. Minhas orelhas ficaram em pé e o meu pêlo arrepiou.
- Os amigos souberam da última aparição? – indagou olhando nos olhos dos outros. Um silêncio, seguido de pigarros e tossidinhas, indicava que todo mundo sabia, mas ninguém admitiria.
Que aparição será essa? – perguntei para mim mesma e logo em seguida vi na face do homem um sorriso, que não põe todos os dentes a mostra. Como ninguém se pronunciou ele continuou:
- Pois dizem que nestes campos, mais precisamente nestes matos e capões vivem os maiores Graxains dos Pampas. Semana passada, uma fêmea, muito linda, de pêlo cinza e patas brancas, foi vista, com cinco filhotes. Há uma recompensa, de muitas moedas, para quem trouxer a bichana... Pois, diz que... O pai das crias derrubou um rebanho de ovelhas... Só que... Foi a tiro... Graxaim malvado não é mesmo. - Todo os homens caíram na risada e um novo silêncio acalmou a noite.
Derrubar um rebanho de ovelhas era um crime muito grave, eu sabia disso, podia ser o fim dos Graxains do Pampa, naquela região. A fogueira havia apagado, os homens dormiam e os cavalos continuavam amarrados. Eu estava com medo e começando a congelar quando senti o calor de mamãe, ela nos convidava para partir em silêncio.
Passávamos bem no meio do acampamento quando o contador abriu os olhos e num movimento rápido colocou a mão na faca, que trazia na cintura. Minha mãe olhou bem dentro dos seus olhos, sem medo e sem baixar a cabeça, rosnou mostrando todos os dentes. Meus irmãos e eu nos escondemos entre suas patas traseiras e ela foi andando, vagarosamente, para trás. O homem baixou a mão e disse baixinho: - Vai!
Até hoje não entendi essa história, mas, fugimos dali e de longe ouvimos o uivo mais assustador de todos: O Grande Graxaim do Pampa saudava a lua e a liberdade.
Depois fiquei sabendo que quem derrubou o rebanho de ovelhas foi um daqueles homens. E quem descobriu tudo foi o tal contador de causos.
Agora ando sempre atenta e evito acampamentos e ovelhas... No mais, a vida segue tranqüila por estes caminhos do pampa.

Fernanda Blaya Figueiró
Viamão, 03 de janeiro de 2009