23 de jun. de 2008

Rota Náutica Cultural

Oi Gente!
Esse texto foi escrito depois de um passeio que fiz a Itapuã, em abril de 2007. Achei que estava publicado na integra, mas, por algum erro meu tem um capítulo publicado duas vezes e outros estão faltando. Na época eu pretendia fazer um livreto, mas acabou não saíndo
um abraço
Fernanda Blaya Figueiró.
Esta versão já tem Co-autoria da Angelita, o texto foi escrito antes de iniciar nossa parceria, mas ela corrigiu, melhorou e na época escreveu um pequeno texto de introdução.

Rota Náutica Cultural
Autoria: Fernanda Blaya Figueiró
Co- autoria: Angelita Soares

Linna e Muray foram convidadas para participar da Rota Náutica Cultural, uma viagem pela Lagoa dos Patos e pelo Guaíba, ressaltando o lado histórico desta travessia. Elas partiram de Itapuã, o belo balneário de Viamão.
Antes da aventura procuraram inspiração nas palavras do viajante francês Auguste de Saint-Hilaire, datadas de 19 de junho de 1820: “Viamão está encravada em uma coxilha donde se descortina vasta extensão de campos levemente ondulados, no meio dos quais se levantam tufos de bosque. Embora desfrute agradável situação, foi ela quase abandonada depois da fundação de Porto Alegre, que está melhor posicionada para o comércio. Compõe-se, principalmente, de duas praças contíguas e de forma irregular; numa delas se ergue a Igreja. Depois de São Paulo, ainda não conheci outra igual a essa. Possui duas torres bem conservadas, muito limpa, clara e ornamentada com gosto. Pelas Igrejas do Brasil pode-se julgar de quanto seria capaz este povo se os meios de sua instrução fossem multiplicados e tivessem alguns bons modelos para orientá-los”[1].
Do que seria capaz este povo, tendo bons modelos a orientá-los?
Era de se pensar, o que o cientista vislumbrava em 1820 para esta nação brasileira? Ordem e Progresso.
2007. 11 de abril. Como Viamão é vista pela filha Porto Alegre, como é lembrada nestes dias de abril? A estrada serve ainda como o velho cordão umbilical. E os prados como o colo, as águas como consolo. O verde como alento. A anciã pacientemente espera, nas bicas, nos lagos, nas figueiras.
Um dia o Rio Grande ainda há de lembrar dela. Ainda há de pedir seus conselhos, volver a cabeça para sua longa jornada e prestar um tributo a Setembrina dos Farrapos. Aquela que do alto tudo vê e nada cobra.
Vamos enfrentar o rio, ouvir o vento, saber a história. Viver o presente e construir o futuro.
De que é capaz um povo com cultura?
“O que me chamou a atenção, depois que cheguei a esta capitania, é o ar de liberdade de todos com que me deparo e o desembaraço de seus gestos... Numa só palavra: são mais homens.”[2].














Liberdade, Igualdade, Humanidade.
O ônibus que conduziu a expedição ao Farol de Itapuã saiu do estacionamento em frente à Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, em Viamão. A mesma que, em 1820, deslumbrou o francês Saint-Hilaire. Pena que 187 anos depois, ela não esteja tão bem conservada. A Igreja foi construída entre 1768 e 1778, tendo, aproximadamente, 239 anos. Continua belíssima, mas precisa de uma boa restauração, basicamente uma pintura, já que é sólida e não apresenta sinais aparentes de danos estruturais.
Pirim-pom-pim, a lagartixa estava no pergolado da praça tentando almoçar uma aranha, quando caiu na mochila de Linna Franco. Muray viu e ficou quieta, não queria causar tumulto.
Com o grupo reunido, a “viagem” começou, às treze horas e trinta minutos. Fazia um calor abafado, típico do mês de abril, com temperatura amena no início da manhã, esquentando ao longo do dia. Ao longo do trajeto, a paisagem mudava radicalmente! Cidade e campo se intercalavam; gente, construções, gado, campo. Quanto mais próximo de Itapuã, mais campestre a paisagem ficava.
Os integrantes da expedição Farol de Itapuã conversavam em pequenos grupos pouco entrosados, devido ao caráter profissional, muito diferente de um passeio; cada um estava ali por um motivo: biólogos, fotógrafos, escritores, historiadores, professores o secretário e a turma da cultura.
Pirim-pom-pim estava ali pelo almoço perdido. Dentro do ônibus, não havia nada atraente para ela. Linna não parava quieta, fazendo projetos e maquinando coisas, falava o tempo inteiro em Josefina. Muray observava os campos. Notou grande quantidade de gado, ovinos e bananeiras. Não viu lavouras, mas notou que havia alguns parques e sítios de lazer.
Logo na chegada, em Itapuã, o tempo começou a desacelerar. Uma coisa bastante estranha! Linna comentou com Muray que parecia que tudo tinha um ritmo diferente.
- Muray, não parece que as pessoas estão andando mais devagar?
- Também achei. Linna, olha que igreja linda! - exclamou admirada.
- Igreja de Nossa Senhora dos Navegantes.
A pequena igreja era encantadora, branca com ornamentações em azul, as cores de Iemanjá, ou Nossa Senhora dos Navegantes. Em frente à igreja, uma praça bem cuidada e simpática recebia os visitantes. A guia informou que, durante algumas celebrações religiosas, o povo de lá cobria a frente da igreja com tapetes de flores. Era um espetáculo artístico imperdível. E uma demonstração da Fé do povo.
Um pequeno cais guardava várias embarcações, um típico clube náutico. O “Farol de Itapuã” atracado no trapiche aguardava os passageiros. Logo que subiram a bordo a tripulação orientou sobre os cuidados básicos para que a viagem fosse um sucesso: manter a rota e o equilíbrio. A rota era fácil, pois o comandante sabia bem o que fazia. Já o equilíbrio dependia dos tripulantes.
“Proteger é nosso compromisso” estava escrito em uma bandeira preta ambulante. Pirim-pom-pim acabou concluindo que era, na verdade, uma camiseta. Ou seria um Pirata?
- Linna, olha pra mim!- a lagartixa arranhou o braço dela e se fez perceber.
- Oi! O que você faz aqui? – disse a jovem estagiária de jornalismo.
- Eu estava tentando almoçar e caí na sua mochila. Estou quase perdendo as forças, de tanta fome.
- Aqui só tem amendoim salgado. - respondeu Linna.
- Posso me confessar?
- Pode! –respondeu.
- Comi uma mosquinha no ônibus. Foi uma lanchinho, nada comparado com um almoço. Mas, presta bem atenção, você viu como tem gente usando preto?
- Preto?- indagou ela olhando bem para a lagartixa.
- Roupas pretas! Não serão piratas infiltrados?
- Piratas! Não, é a moda, preto veste bem e emagrece.
- Tem certeza?
-Tenho. Como você se chama?
- Pirim-pom-pim. Pirim, Pom por parte de pai e Pim por parte de mãe.
- Ok, Pirim. Estamos em 11 de abril de dois mil e sete. As pessoas adoram roupas pretas.
- Tem certeza? Você não percebeu que as coisas estão diferentes?
- Sim! Até comentei com Muray. Parece que o tempo anda mais devagar aqui.
- Ou anda para trás? -Pirim falava sério.
O comandante falava em velhas embarcações: Farroupilha, Seival, Vinte de Setembro. A disputa pelo canal: Tenente Parker versus Garibaldi. Farroupilhas versus Imperiais. Tempos de canhões, cercos, acantonamentos e fortalezas.
À medida que a embarcação entrava pela laguna do Guaíba, em direção a laguna dos Patos, as histórias se misturavam: Piratas, Jesuítas, Farroupilhas, Índios, Africanos, Açorianos, Pescadores, Extratores de Granito Rosa, Ativistas ambientais. Todos estavam misturados, nos relatos da guia, e haviam deixaram marcas de sua passagem por ali.
Uma gorda carpa de barriga para cima boiava; havia tombado em alguma batalha náutica contra hélices e ferro, uma coisa dos dias de hoje.
Passaram pelo “Porto de Viamão”, uma enorme embarcação lotada de alimentos, que escoava a safra, de Rio Grande até Porto Alegre. O comandante fez soar o apito, muito cortês. Com um gesto amigo acenou para eles.
- Linna! Você viu isso? – perguntou Muray
- O Porto de Viamão transformado em uma velha embarcação Portuguesa?
- Eu avisei! – interrompeu Pirim – São Piratas!
Linna, Muray e Pirim haviam presenciado um estranho fenômeno; o tempo havia enlouquecido. As pessoas dentro do Farol de Itapuã usavam roupas estranhas, as mulheres vestidos longos e bordados, lenços encobriam suas cabeças; já os homens usavam umas calças esquisitas, algo tipo alpargatas nos pés e camisas brancas.
Na proa pelo lado externo um homem misterioso, vestia camisa e bombacha pretas. Uma faixa vermelha na cintura e botas. Os cabelos compridos tapavam seu rosto.
A paisagem estava intacta, a vegetação segundo a guia, uma ponta da Mata Atlântica, fez com que Linna lembrasse de Acauã, seu namorado, um verdadeiro morador da mata, lá de Maquiné. As cores da roupa do estranho lembravam os amigos Tamoios. Seria um deles?
Enquanto elas observavam o viajante misterioso, a guia falava na Pedra do Equilíbrio, uma escultura natural que tinha o formato do mapa do Rio Grande do Sul. Era um enorme bloco cuneiforme, equilibrado sobre o sólido granito rosa. Presa a ela estava uma casa de marimbondos, que servia como Quartel General, da proteção animal do santuário.
O barco avançando laguna a dentro chegou ao “Farol de Itapuã”: uma bela herança deixada pelos portugueses em 1860. Forte ilumina, ao anoitecer, vinte quilômetros da Lugana dos Patos.
O Escudo Rio-Grandense, assim é chamado o estreito que durante a Revolução Farroupilha foi estrategicamente usado no famoso cerco à cidade de Porto Alegre.
Linna, Muray e pirim estavam confusas, havia muita história sendo contada e elas não conseguiam imaginar como tudo isso ficava esquecido, na correria do dia-a-dia. Perdido no tempo.
Uma frágil libélula se aproximou delas, disse que chamava-se Princesa Li, pousou com muita delicadeza, mas sem medo. Comportamento típico de uma princesa. Seus olhos ficavam bem abertos e atentos a tudo. Pirim, quase viu nela a refeição que precisava. Muray foi quem chamou sua atenção, deveria manter os modos.
Princesa Li chegou a ser pega por um dos tripulantes, que logo soltou-a. Afinal, era uma autoridade ou não era??
O auto-falante emitia a voz guardada do velho Teixeirinha: “Quem quiser saber quem sou, olha para o céu azul e grita comigo: ‘Viva o Rio Grande do Sul’! O lenço identifica, qual a minha procedência. Da Província de São Pedro... O meu Rincão... Querência Amada...”
Pedra do Sapo, Praia da Onça, Ilha do Barba Negra, Praia do Tigre, Prainha, Praia das Pombas... Tanto lugar mágico. Uma capela e uma fortaleza ali dormem, abençoando e protegendo os animais e plantas.
As histórias sobre o corsário Inglês, o escravo jamaicano, os hippies, os soldados, os índios, os imigrantes e nós. Fizeram com que elas pensassem: mito e realidade andam juntos e de mãos dadas?
Há um grande Tesouro em Itapuã: A cultura.
Princesa Li convidou o grupo a andar pelas praias. Era proibido, graças aos homens de bem. Mas, ela tinha passaporte e, Linna e Muray, bons antecedentes: “O Caso Araucária”, “Os Mistérios do Lago Tarumã”, “Itaimbezinho, o Desafio” e “O Cometa”[3], aventuras que davam a elas credibilidade no mundo mágico da fantasia e da busca por uma realidade melhor.
Deveriam despojar-se de teorias e pensamentos negativos. No Santuário de Ita Pua, as pedras apontavam o caminho que a Mãe Natureza queria trilhar ao lado dos homens, aqueles “mais humanos” que vislumbrou o viajante francês.
Homens, Livres e Iguais! Em equilíbrio com a Natureza... “ O nosso dever é proteger!” estava escrito numa bandeira ambulante, como Pirim havia lido. Princesa Li não precisava de proteção, morava num lugar fora do real. Mas, queria ensinar as lições dos habitantes da reserva. Convidava todos a conhecerem um pouco de sua casa.









O pelicano “Solito”
Princesa Li mora na antiga salga, lugar onde os pescadores salgavam os peixes para conservar e trocar por alimentos e outros artigos. Ela convidou as amigas Linna e Muray para desembarcarem. O Farol de Itapuã ficou ancorado, seus tripulantes imóveis.
O homem misterioso sorriu para elas e piscou o olho, era um amigo de Princesa Li. Linna indagou de quem se tratava. A princesa pediu que ignorassem sua presença, era um ser muito respeitado, mas discreto. Chegada à hora elas saberiam quem era.
Uma palafita em ruínas, assim era a antiga salga. A água batia levemente nos pés da construção, o mato havia derrubado o piso e a fachada. O mobiliário do palácio era todo construído com espinhas de peixe e conchinhas da lagoa.
O espelho de um camafeu europeu do início da colonização do Brasil servia para Princesa Li enxergar a história. A peça rara havia sido encontrada há muito tempo, nas areias grossas da Prainha. Li explicou que fazia parte de um tesouro, guardado a sete chaves, pelos espíritos do corsário inglês e do escravo jamaicano. Dentro dele há o retrato de um anjo: alguém que atravessou o mar.
- Li! Quem construiu sua casa?- perguntou Muray.
- Os pescadores, quando ainda moravam aqui. E o meu cantinho, fui eu e minha família. Juntamos estas coisas todas, na Vila tem pessoas que fazem estas maravilhas. Vivem disso.
- Linna! Você viu a beleza dos cactos, eles têm flores e frutas. Será que toda esta variedade de plantas é nativa? – questionou Muray.
- Alguma coisa acaba vindo de navio para cá, mas os biólogos procuram manter a mata nativa - explicou Li. - Aqui tudo é muito bem cuidado e planejado.
- Que calmaria! – Linna estava encantada com o lugar. – Estas figueiras são lindas. Vou tentar fotografar isso tudo.
- Fiquem a vontade, eu preciso participar de uma convenção, encontro com vocês depois. – Informou Li.
- Que convenção? – Muray estava curiosa.
- Pré-Convenção Centenária da Lua e do Sol. Vamos estudar as mudanças deste início de século. A cada ano dez de cada século há uma grande avaliação. E como esta convenção, além de abrir um século, abre um milênio, não podemos vacilar... É muito importante. Precisamos alinhar as condutas, vocês entendem?
- Sim, - respondeu Linna. – E... não. Eu tenho pensado muito nisso, desde que vimos o Cometa McNaught, lá em Maquiné. Quanto das mudanças no planeta é causa da ação humana e quanto é próprio da evolução do Planeta?
- Exatamente!Eu li seu texto! Por isso vocês estão aqui. Pensamos a mesma coisa. Esta reserva existe a pouquíssimo tempo, desde mil novecentos e setenta e dois. Só trinta e cinco anos e vejam que resultado!
- Impressionante! - indagou Muray. - A capacidade de regeneração do meio ambiente.
- E o equilíbrio que existe entre homem e natureza. – Princesa Li disse- Eu preciso mesmo ir. Mas, já retorno.
- Podemos participar? – indagou com pouca convicção Linna.
- “Não! Aos Homens!” Desculpem-me é o lema, eu sei que vocês e muitos outros são bons. O problema é que a Convenção está um pouco “com uma pulga atrás da orelha, com a humanidade”.
- Sem problemas, nós entendemos. – disse Muray.
Princesa Li afastou-se e entrou no camafeu. Linna e Muray olharam-se, o Farol de Itapuã estava parado, até as ondas em volta da embarcação haviam “congelado”.
A areia estava quente e a água próxima à praia fria. O Pelicano Solito pescava lambaris. As duas tentaram, em vão falar com ele, que concentrado parecia meditar. Abria as asas brancas e estufava o peito e apanhava o ar. Erguia o pescoço e a cabeça na direção do poente.
Um bugio sorrateiro puxou a mão de Linna.
- Não atrapalhem Solito, ele está ouvindo a serenata do fim do dia.
- Desculpe!- disse Muray – Você é?
- O Faroleiro... Muito prazer!
- Somos...
- Linna e Muray, como vai Acauã e sua turma?- indagou Faroleiro.
- Todos bem! Você é bem informado.
- Pois!Pois! Minha família está aqui faz muito tempo. Antes mesmos dos portugueses chegarem, já havia um de nós aqui. As meninas querem um cogumelo? São produzidos aqui mesmo. Macios, Macios!
- Claro!- respondeu Linna – Você sabe algo sobre o espelho do camafeu?
- Minha nossa! A Dama de Branco! Os marujos sempre contam que nas noites de Lua Cheia ela aparece... Toda de Branco, igual à imagem do interior do camafeu... Pois, pois! Eu já vi... Com estes olhos que a terra a de comer! Ela entra na laguna e segue o rastro das embarcações. E puxa um marujo pro fundo das águas. De manhã, Hum! O Guaíba devolve.
- Nossa! Por que será? – indagou Muray
- Hum! Por que foi um marujo... Vocês sabem... Deixou a pobre desencantada da vida. Homens do mar, sabe?... Em cada porto, uma porta!... Não que eu seja de fazer fofoca. Longe de mim, mas um bugio faroleiro vê longe.
- Muito gostosos estes cogumelos. Obrigada, Faroleiro. Podemos entrar no Farol?
- Não!
- Ok, valeu a tentativa.- disse constrangida Linna.
Faroleiro era direto e objetivo. Acompanhou as duas com muita presteza. A vegetação rangia sob seus passos, os animais eram amistosos. Linna tirou muitas fotografias e Muray descreveu tudo em um pequeno bloco, a estagiária de biologia do Jardim Botânico estava fascinada pela exuberância da reserva.
Linna pretendia focar o bem que estava diante de seus olhos, era possível ao homem viver com dignidade, respeitando o meio ambiente, a vida, como a Mãe Natureza gostava de dizer.
Ela sentiu uma enorme vontade de dançar um fado, talvez por que usasse um vestido rodado e um avental branco, tamancos e meias grossas. Muray riu muito, Linna era muito desengonçada. Parecia uma boneca dançando com Faroleiro.
Solito não agüentou e caiu na gandaia. Quando Princesa Li retornou do espelho encontrou a maior farra. Desconfiada perguntou se elas haviam comido algo
- Os cogumelos macios que Faroleiro nos deu. – respondeu Muray – Sabe está tudo rodando, rodando...
- Eu não acredito! Faroleiro, como você foi capaz de enganar as meninas?
- Desculpe-me Li, não agüentei, foi só uma travessura deste macaco velho. Mas, elas se divertiram!
- Que feio! Tomem é água pura, das vertentes... Vamos voltar para o Farol de Itapuã.
- Como você é brava Li, venha dançar! – disse Muray.
- Não! A Pré-Convenção foi preocupante... Acordem! Na volta vou ter uma séria conversa com este bugio...
- Alto lá!
A mata inteira parou. Solito pediu a palavra. Como era um sábio ninguém queria perder um só suspiro dele. Princesa Li sentou sobre um altar de granito rosa e todos os animais sentaram aos seus pés.
Linna e Muray já estavam normais, a água havia clareado suas mentes. Elas usaram um velho pedaço de madeira do casco do Campista, um náufrago, como banco e sentaram para ouvir.
O pelicano engoliu a saliva, era muito tímido, abriu as enormes asas brancas, mergulhou as patas na água, esticou o pescoço e declamou um poema:
- “Não digas onde acaba o dia. Onde começa a noite. Não fales palavras vãs. As palavras do mundo. Não digas onde começa a Terra. Onde termina o céu. Não digas onde és tu. Não digas desde onde é Deus. Não fales palavras vãs. Desfaze-te da vaidade triste de falar. Pensa, completamente silencioso. Até a glória de ficar silencioso. Sem pensar”.
- De quem são palavras tão belas? – indagou Faroleiro - Do General Bento? Do Che?
- Você não entendeu o sentido do poema. São palavras de Cecília Meireles. No III Cântico, ela viaja num livro magrinho, mas com grande conteúdo. Um Tesouro encontrado na biblioteca de Viamão. Vão e escutem seus corações...
Conscientes de sua existência elas retornaram ao Farol de Itapuã, concentradas em seus aprendizados olharam novamente a laguna e o Farol: iluminando, apontando, imperando na ponta das pedras.
Princesa Li olhou para o homem misterioso e tudo voltou ao normal, todos usavam suas roupas e tinham os cortes de cabelos modernos, usavam relógios, celulares e câmeras digitais.
Pirim veio correndo falar com elas.
- Vocês não sabem o que aconteceu aqui! Mais de mil embarcações passaram pelo Escudo Rio-Grandense – disse eufórica – desde pequenas canoas até grandes navios... Lancha, pesqueiro, draga, jet ski, wind surf, veleiros. Até um mosquito da dengue navegando em uma palha de milho. Este para o bem de todos... Engoli! Palavras! Uma porção delas, tudo que é tipo, estou zonza com tanto falatório.
- Por isso Solito leu aquele poema. – ponderou princesa Li – Pirim você tem que se cuidar! Pois aqui tudo pode virar pedra.
- Como assim? – indagou Muray.
- Vocês não prestaram atenção. Há uma capivara tentando entra na água bem na frente do Farol, depois o sapo, a onça, o tigre, o traseiro de um elefante. Lagartixa ainda não tem...
- E o que eles fizeram?
- Comeram os cogumelos do Faroleiro.
- E nós? – indagaram ao mesmo tempo Linna e Muray.
- Vocês beberam as águas puras das fontes, provavelmente estarão livres desta magia. - respondeu clamante Princesa Li.- Sexta-feira 13 de abril nós descobriremos ao pôr do sol. Sorte de vocês que a lua estará minguando, num grande movimento de renovação.
- Sexta-feira, treze. – Disse Pirim – Olhem! O barco está perdendo o equilíbrio. Socorro! Pra direita, pra esquerda, pro meio, pra proa, pra polpa! Socorro!
- Calma! Já está no lugar! – Muray estava perdendo a paciência com Pirim.
- Pessoal! Vamos sentar, a pré-convenção pediu que lêssemos o Cântico nº XXI do Livro de Cecília Meireles. Solito já está examinando e vai em breve dar sua interpretação. Princesa Li usando o microfone recitou para todos o cântico:
XXI – Cecília Meireles
O teu começo vem de muito longe.
O teu fim termina no teu começo.
Contempla-te em redor.
Compara.
Tudo é o mesmo.
Tudo é sem mudança.
Só as cores e as linhas mudaram.
Que importa as cores para o Senhor da Luz?
Dentro das cores a luz é a mesma.
Que importa as linhas para o Senhor do Ritmo?
Dentro das linhas o ritmo é igual.
Os outros vêem com os olhos ensombrados.
Que o mundo perturbou,
Com as novas formas.
Com as novas tintas.
Tu verás com os teus olhos.
Em sabedoria.
E verás muito bem.
- Olhos ensombrados? – Disse Linna – Li! A água pura das vertentes parece que clareou a nossa visão. Será que tem a ver com o poema?
- Vermos sexta-feira, 13.- respondeu calmante Li - Quando o Farol acender, iluminando as águas; e as margens; e as vidas das pessoas e dos animais. Nosso companheiro Everton um dia disse: “O boi é bicho, mas tem alma sobre o couro”... Muito sábio.
O Homem misterioso olhou para elas, seu sorriso era largo e amigável; seus olhos profundos e ternos. Princesa Li baixou a cabeça.
- Adeus! Senhor Tempo! Adeus!- disse a libélula com lágrimas nos olhos.
Ele desembarcou junto à fortaleza e de lá acenou para a embarcação, os relógios dispararam e o Farol de Itapuã aportou em segurança no trapiche de madeira.
Pirim estava redonda e nem provou os pasteizinhos de peixe feitos na hora, que todo mundo aproveitou.
Três bugios amigos do faroleiro que a muito moravam na Vila de Itapuã fizeram acrobacias e contaram anedotas... Assim terminava a expedição e o dia. Com cores quentes nos céus de Viamão.




Solidão do Viamão
Senhor Tempo encontrou com o bugio Faroleiro e o pelicano Solito, na hora em que o Farol foi acesso e Princesa Li soou o sino, informando o fim do dia.
Para eles, o anoitecer inaugurava um novo dia, com isso variava conforme a rotação da terra, num código diferente.
Na antiga fortaleza farroupilha, o grupo conversava, brincava e fazia “Arte”. Faroleiro era ator; Solito, poeta; Princesa Li, escultora e Sr. Tempo, maestro.
- Eles acreditaram que minhas estátuas eram mesmos animais prisioneiros – brincou Li.
- Gostei muito das duas meninas, – disse Faroleiro – elas pareceram muito comprometidas com Mãe Natureza.
- E sedentas de conhecimento, - constatou Sr. Tempo – Só acho que ficaram um pouco confusas.
- Humanos!- decretou Solito – Precisam compreender os fatos numa perspectiva linear, principalmente no tempo!
- Por isso, o poema fala em ritmo, linhas, cores e luz?- Perguntou Li.
- O Poema XXI- respondeu Solito – Serve bem para o século XXI; a humanidade está perdida em suas frágeis convicções. Por isso, olhos ensombrados devem buscar a verdade.
- A verdade é um conceito bem complicado – disse Sr. Tempo – Eu sei! Pois, acompanho tudo isso, desde o princípio. O tempo dirá! Eles afirmam e eu digo. Achas que eles ouvem?
- É tudo uma grande encenação – Faroleiro ria. - Nós atores sabemos bem. É preciso navegar nas águas perigosas da vida para chegar além, para transpor o comum, o óbvio e vestir o figurino da luz.
- Uma bela interpretação! – indagou Solito – Será que vai dar em alguma coisa?
- Sempre acontece alguma coisa!- disse Sr. Tempo – Isso tudo era habitado por índios, de várias nações. Nômades, eles transitavam por toda esta região, prósperos e, até certo ponto, pacíficos.
- Eles tinham sua própria identidade – interrompeu Li. – Suas crenças, hábitos e costumes.
- Certamente !– continuou Sr Tempo – Tanto que, por algum tempo, combateram os colonizadores portugueses e espanhóis.
- Que brigavam muito!– disse Faroleiro – Disputavam entre si e com os índios.
- E com outros povos! – interferiu Solito. - Os humanos sempre disputam alguma coisa...! De tempos em tempos conseguem o equilíbrio. Vocês perceberam que eles têm dificuldades até de manter a nau estável, mesmo com os apelos do comandante e as instruções. Todos querem sol...Nos dias frios. e todos querem sombra... Só que nos dias quentes!!!Sempre querendo o está ausente e sem ver a dimensão real do presente...!!!
- Por isso, foram muitas guerras – disse Sr. Tempo_ muitos acontecimentos. Eles contam a história, a partir do que sabem: em 1494, Espanha e Portugal sentam para negociar, na cidade de Tordesilhas. Um tratado divide o planeta em dois. Mas, não evita as guerras.
- Eu imagino os primeiros europeus chegando aqui... – disse Faroleiro – imagino o quão deslumbrados ficaram...
- Para quem já habitava estas terras deve ter sido um choque. – disse Li .
- Vamos diminuir esta fatia. – sugeriu Solito – Vamos pensar que, em mil setecentos e trinta e quatro, vieram de Laguna para cá os desbravadores, com seus agregados e escravos. Depois, em mil setecentos e quarenta e um, em quatorze de setembro, Francisco Carvalho Cunha doa terras e gado, para que se construa a Capela Grande de Viamão. Com a ajuda da comunidade.
- A sociedade como conhecemos começava a se formar, misturando as culturas e o sangue das pessoas. - disse Li.
- Resultando no gaúcho, um povo brasileiro. – concluiu faroleiro – Sr. Tempo, quando começou a escravidão?
- Há muito, muito tempo..!!. Imaginem que as pirâmides do Egito já foram construídas usando mão de obra escravizada. Porém, a que aconteceu no Brasil e em outros países da América, data aproximadamente de mil e quatrocentos, com o fim da idade média. Quando o colonizador europeu veio para cá, já havia a exploração de colônias na África. Graças a Deus, isso tudo acabou.
- Mas, tem coisas que ficaram muito mal resolvidas!! - disse faroleiro – Por isso, as pessoas têm que crescer muito e abrir o horizonte de poder ver melhor...!!
- Os Casais Açorianos chegaram, aqui ,por volta de mil setecentos e cinqüenta e dois. Vindos de Laguna, onde haviam desembarcado em mil setecentos e quarenta e oito. Espanha e Portugal ainda disputavam território. – Sr. Tempo estava cansando de tanta conversa.
- Acho que isso já foi bastante esclarecedor... Dá para entender, um pouco melhor, os fatos históricos que aconteceram aqui, - disse Faroleiro – Os índios, os Colonizadores, os Açorianos, as Africanos e mais tarde, bem mais tarde, os imigrantes, todos passaram por aqui para chegar ao Rio Grande. Cada um com seus hábitos, sua cultura e sua língua. Bem como os aventureiros, os navegadores, os homens de guerra e os piratas. Já que aqui havia muita riqueza. Vieram pessoas boas e ruins, como em qualquer lugar.
- Até por que bom e ruim, mudam conforme os interesses de determinados grupos. - disse Li - Por isso uma história sempre tem que ser contada por várias pessoas.
- Para “ ver em sabedoria”, como dizia Cecília.- Disse Solito.
O ar puro da noite acalmou o calor da tarde, os amigos continuaram cantando, dançando, comendo e confraternizando até que dormiram. Ao amanhecer os pássaros sob a batuta de Sr. Tempo, perfilados e em harmonia brindaram a presença do sol com uma sinfonia. As flores exalaram seu perfume e as plantas alimentaram a vida. O orvalho matou a sede de todos.
Princesa Li começou com suas frágeis patinhas a esculpir uma figura humana, com os olhos voltados para o verde e o Coração cheio de amor e esperança.
O bugio Faroleiro ensaiava mais um ato de seu espetáculo; e o pelicano Solito versejava sobre a Solidão de Viamão...
Solidão sentida em sua alma animal,
“A glória de ficar silencioso. Sem pensar”.
Cecília Meireles







Abril, sexta-feira, 13. Dois mil e sete.
Lua minguante e céu claro.
Linna e Muray convidaram toda a turma para estar com elas, ao pôr do sol de sexta; Acauã veio de Maquine só para acompanhá-las.
As palavras de Princesa Li não saiam de suas mentes, contaram tudo em detalhes para os amigos. Todos reunidos, ás margens do Guaíba, próximo a usina do Gasômetro.
Assim que o sol se pôs, uma alegria infinita invadiu seus corações; as nuvens do céu de Porto Alegre ganharam um tom de rosa claro...O mesmo do granito das pedras de Itapuã. Uma mão parecia esculpir imagens nos flocos de nuvem...
- Vi a mão! - Indagou Josefina – E vocês viram?
- Que mão? – indagou Tadeu.
- Eu estou vendo – disse Acauã – Uma mão desenhando uma pessoa e um inseto.
- Princesa Li e nós – indagou Linna – Mas por que uma pessoa?
- Por que é um símbolo. - Disse Muray.- E nós achando que viraríamos pedra.
- Um símbolo de união entre pessoas e animais. – disse Josefina – Olhem! Agora está aparecendo uma flor, como a que Acauã deu para Linna, lá em Maquiné. Deve simbolizar as plantas.
A turma sentou para conversar, fizeram uma pequena fogueira. E riram, cantaram e dançaram até tarde... Estavam com saudades uns dos outros.
Combinaram que, no domingo, todos iriam até Itapuã, fazer as trilhas e desbravar aquilo tudo. Levariam mapas antigos e livros de história. Oscar queria transformar a experiência em uma matéria para o Jornal Universitário. Linna divulgaria no programa de Rádio e Muray convidaria o pessoal do Jardim Botânico para a expedição.
Um vento forte trouxe a música de Sr. Tempo até eles e levou o som das batidas de seus corações para lá.
Na Fortaleza, os amigos souberam que a turma de Linna Franco havia entendido o recado. Na Usina, a energia se renovou em pensamentos e idéias.
“...Tudo é o mesmo.
Tudo é sem mudança...” ( Cecília Meireles)
Tadeu usando uma faixa vermelha brincava: o Jovem Guerreiro Tamoio.




[1] Retirado do livro Viagens ao Rio Grande do Sul – Auguste de Saint-Hilaire. Pg.45
[2] Op. Cit., pg 46
[3] A autora faz referência a textos anteriores, da série Linna Franco.

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